Por Mateus Torelli Fidelis
Começo esse artigo jornalístico propondo ao leitor e à leitora dois exercícios: o primeiro referente à imaginação; o segundo, à alteridade. Quando você for passear na praça Dr. Miguel Dinizo, no parque Alambari I e II, pelas ruas dos bairros e em suas pequenas praças, no Cristo da Morada do Sol ou em algum ponto de referência da cidade que permita visualizar sua paisagem urbana ou “natural”, pense o seguinte: de onde surgiram esses lugares? Quando e como se formou a paisagem cambaraense? Assim, fica mais fácil perguntar: como se deu, historicamente, a formação da cidade?
Lendo os livros históricos das escritoras Alba Pugas e Alice do Amaral Faria sobre a história de Cambará, fica fácil delimitar o início da formação desse território, sendo 1904 o “primeiro” indício de presença humana no lugarejo conhecido como “Alambari” e 1924 sendo o marco do nascimento de Cambará enquanto município reconhecido por Lei. Peço à leitora e ao leitor que prestem bem a atenção nas aspas que coloquei anteriormente no adjetivo “primeiro”. Esse adjetivo tem uma forte ligação com a identidade das pessoas que ocuparam esse espaço nesse período. Essas pessoas são designadas como “pioneiras” pelo fato de serem os “primeiros” a desbravarem, em uma saga “heroica”, esse lugar. Pioneiro é sinônimo de primeiro, aquele que precede e explora, sendo uma terminologia exportada do far-west estadunidense.
Feito o exercício de imaginar e questionar como se formou a cidade de Cambará, é necessário, nesse momento, realizar o exercício de alteridade. Mas o que significa alteridade? Sendo bem sintético, alteridade é um conceito antropológico (Antropologia é uma área responsável por compreender a diversidade histórico-cultural existente nesse planeta). Alteridade significa se colocar no lugar de outrem (pessoa de outra cultura na qual não conheço), tentar compreender o mundo como uma pessoa que pertence a outra cultura, entende? Nesse caso, alteridade é diferente de empatia.
A visão que o português tem sobre o “descobrimento” do Brasil (Novo Mundo) é bem diferente da visão que os povos indígenas têm sobre sua chegada. Para essas comunidades não foi “descobrimento”, foi invasão. São culturas diferentes com olhares distintos sobre os acontecimentos. Cabe a nós alternarmos entre essas visões para analisar qual é a mais fidedigna e humana, correspondendo à realidade histórica. Quando criança, fui ensinado que o Brasil foi “descoberto” pelos europeus, desde então, não imaginava que a existência das populações indígenas era antecedente à chegada dos portugueses, no final do século XV. Depois que comecei a cursar História na Universidade Estadual do Norte do Paraná, comecei ter acesso a outras leituras de mundo (aliás, comecei ter a prática e prazer de ler livros na Universidade). Essas leituras, voltadas ao campo da História, Antropologia, Sociologia, Filosofia e afins, me fizeram conhecer diversos conceitos, quero dizer, modos de compreender o mundo. Voltando ao exemplo anterior, na escola também fui ensinado a conhecer conceitos, como o conceito de “descobrimento”. Esse conceito, por sua vez, me ensinava a ver um mundo limitado, um mundo que só existe na cabeça do sujeito do Ocidente (do europeu). Além disso, eu não conseguia distinguir ou diferenciar uma cultura da minha. Para mim, a cultura ocidental era a “única” e a mais “evoluída”. É assim que a cultura ocidental molda a nossa subjetividade (indivíduo-sujeito), tornando-nos “especiais” e “únicos”. Nessa sociedade da cultura ocidental fui ensinado a ter preconceito, imaginar que os “índios” não são humanos, não são pessoas como nós, logo não merecem ter a mesma dignidade humana que temos. Isso era o que pensava, não colocava isso em prática. Mesmo assim, me envergonho muito desse pensamento.
Um outro exemplo é necessário: imagine que nesse centenário cambaraense, estamos em nossas casas, praças, lugares diversos ou realizando qualquer outra atividade cotidiana e, de repente, notamos a chegada de diversas pessoas armadas e de um general pertencente a outra cultura dizendo que veio colonizar esta cidade. A pergunta que vai nascer é a seguinte:
- “Por que você vai nos colonizar sendo que já temos nossas vidas, casas, cultura e relações sociais estabelecidas nesse lugar?”
E o general responde: “porque seu estilo de vida é incivilizado, para nossa cultura você é pagão e não condiz com os preceitos de nossa religião, por isso vocês devem serem colonizados e receber os valores que nós criamos”.
Para nós, isso é absurdo. Imagine nossa língua ser trocada? Imagine nossos costumes serem trocados? Imagine nossas religiões e crenças serem trocadas? Imagine nossa paisagem, praças e lugares serem moldados conforme a concepção das pessoas da outra cultura? Posteriormente o general sugere:
- “Vamos fazer o seguinte: derrubaremos todas as casas, prédios, igrejas e comércio e darei para vocês duas alternativas: vocês podem ficar nesse lugar com a condição que falarão nossa língua, praticarão nossa religião e trabalharão (de graça) para a gente, caso contrário, serão mortos”.
A leitora e o leitor devem estar se perguntando sobre o sentido dessa pequena história. O sentido é bem simples: quero que você imagine como foi o “descobrimento” do Brasil na perspectiva das populações indígenas que habitam esse território há muitos anos. Além disso, quero que você se pergunte: havia indígenas nesse espaço antes de Cambará nascer? Com toda propriedade, digo a você que sim. Antes do nascimento de Cambará, esse lugar era um território pertencente às populações étnicas distintas, como Kaingang, Guarani-Kaiowá e Guarani Nhandewa. Esse território que hoje é conhecido como Cambará, era palco de disputas territoriais entre essas populações. É necessário não colocarmos essas duas etnias na mesma caixa, no mesmo lugar, sendo assim todo “índio” como igual, falando a mesma língua, tendo os mesmos costumes e aspectos culturais. Os Kaingang e Guarani-Ñandeva, por exemplo, não falam a mesma língua, não têm a mesma crença, não têm seus modos de ver o mundo iguais e não partilham dos mesmos aspectos culturais. Logo, são totalmente distintos e complexos. Eles disputavam territórios, pois não se reconheciam como iguais, como da mesma cultura. Agora imagina como esses indígenas se sentiram (e sentem até hoje) sobre a chegada dos “pioneiros” no lugar conhecido primeiramente como Alambari e depois como Cambará? Aliás, de primeiro o “pioneiro” não tem nada, considerando que a presença indígena nessa região é histórica.
A presença dessas populações nessa região pode ser evidenciada de diversas formas, e neste texto apresentarei algumas. A dissertação de mestrado do Aluízio Carsten, de 2012, intitulada Ocupação humana da bacia do rio das Cinzas: uma história de povos sem história, comprova por meio de dados arqueológicos e etno-históricos (documentos etnográficos) a presença de diferentes tradições indígenas transitando pelo rio Cinzas. Essas tradições (como a tradição Umbu) chegam a datar mais ou menos 9 mil anos antes do presente, ou seja, 7 mil anos a. C. A tradição Tupiguarani é datada mais ou menos 1.300 anos antes do presente (700 anos d. C.).
A tradição Umbu e Humaitá são classificadas pejorativamente como “pré-históricas”, nesse sentido, segundo a Arqueologia e Antropologia, é mais apropriado considerá-las como pré-ceramistas devido ao fato de não serem inseridas na cultura da cerâmica. No exemplo da tradição Umbu, segundo o artigo do professor Lúcio Tadeu Mota, seus vestígios arqueológicos são datados entre 12.000 e 1.000 anos antes do presente, encontrados em grande parte na região Sul do Brasil, no Uruguai e em partes do estado de São Paulo. Conforme o autor, as tradições pré-ceramistas como Humaitá e Umbu não deixaram descendentes historicamente conhecidos, ao contrário da tradição Tupiguarani. O artigo desse arqueólogo evidencia a presença de diversas tradições indígenas ao longo do Paranapanema (como Umbu, Humaitá, Tupiguarani e Jê), ou seja, a cidade conhecida como Cambará já foi território de diferentes tradições indígenas ao longo do tempo.
Outra maneira de comprovar a presença humana dessas populações é o acervo do professor Lucas Resende Morais. Abaixo, algumas imagens de vestígios arqueológicos de origem não identificada:
Segundo Morais, os vestígios arqueológicos foram doados por pessoas que encontraram esses materiais em suas fazendas. Além disso, compartilho particialmente alguns indícios da minha pesquisa com jornais. Alguns periódicos encontrados na Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro), como Diário da Tarde do Paraná, Correio da Manhã e O Paiz do Rio de Janeiro, noticiam a situação de populações Guarani e Kaingang no momento da chegada dos “pioneiros” (final do século XIX e início do XX). Em muitos momentos, essa relação é de intenso conflito, como no caso do genocídio perpetrado contra os Kaingang pela população platinense (Santo Antônio da Platina), registrado nas folhas do Correio da Manhã (RJ) no dia 13/03/1909, na página 3. Nesse episódio, foram brutalmente assassinados mais de 200 (duzentos) índios Kaingang, entre eles, crianças, mulheres, homens e idosos. Conforme esses jornais, é possível registrar a presença dessas comunidades em diversos locais como: Jacarezinho, Santo Antônio da Platina, Tomazina, Cambará e diversas cidades que compõem o “Norte Pioneiro” do Paraná.
Feito essa exposição, quero que o leitor e leitora reflitam comigo sobre o contexto do centenário de Cambará. Seriam 100 anos de muita história para a gente? Sim, de fato. Mas e para as populações indígenas que resistem até hoje? O que significa esse centenário para eles? O que é um centenário para quem tem 3 mil anos de história (como no caso da tradição Tupiguarani e Jê)? O Paraná conta com diversos Territórios Indígenas, com demarcação legitimada ou em processo de demarcação.
Essa cartilha, extraída do X (antigo Twitter) do Deputado Estadual Goura, demonstra a diversidade indígena no territorio conhecido como Paraná. Na mesoregião do “Norte Pioneiro” do Paraná temos dois Territórios demarcados: o TI Laranjinha e o TI Pinhalzinho. Além disso, há o território dos Nhandewa de Ywy Porã que está em processo de demarcação. Essas populações estão nesse espaço antes da chegada dos cambaraenses, jacarezinhenses, platinenses etc. O que para nós é fundação, para eles é invasão. Os “pioneiros” não descobriram esse lugar. Os “pioneiros” não são heróis ou algo nesse sentido. Na perspectiva dos indígenas, os “pioneiros” são invasores. Quando nos classificamos identitariamente como “pioneiros”, nos autointitulamos como invasores.
Os conflitos sobre as populações indígenas, não aconteceu apenas nessa região. Como indica os estudos de Lúcio Tadeu Mota, se tratando dos Kaingang, os conflitos se extendiam (nos séculos XVII, XVIII e XIX) no Paraná todo, pois esta região se constituia o território dos índios Kaingang (e também de índigenas de outras etnias). O massacre, o genocídio, o assassinato em massa das populações originárias é um processo de longa duração. Quero dizer que isso ocorre desde a chegada dos portugueses, no final do século XV, até os dias atuais. Chamo a atenção do leitor e da leitura para essa questão. São cinco séculos de violação contra a vida das populações indígenas. Nesse momento em que estou escrevendo (20/08/2024), por exemplo, basta realizar uma pesquisa no google sobre os Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul e os Ava Guarani do Paraná, para ver as diversas notícias sobre a violação do direito desse povo à sua terra. Além disso, aconselho vocês a lerem uma matéria do site do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), intitulada “Seguem os ataques: criminosos cercam, atiram e provocam incêncios em retomadas Ava Guarani, Guarani Kaiowá e Kaingang”, publicada em julho deste ano.
Retornando à primeira reflexão que fiz neste artigo, sobre a formação da paisagem e dos lugares que compõem a cidade de Cambará, deixo ao leitor e à leitora a seguinte questão: a cidade de Cambará se formou de maneira espontânea (de maneira “pacífica” e sem conflitos, como se refere os livros de Alba Pugas e Alice do Amaral Faria) ou Cambará é fruto de um genocídio e invasão de territórios indígenas (assim como outras cidades que compõem o “Norte Pioneiro” do Paraná?
Referências:
CARSTEN, A. A. Ocupação humana da bacia do rio das Cinzas: Uma história de povos sem história. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em História – PPH, Universidade Estadual de Maringá, 2012.
MOTA, L. T. As populações indígenas Kaiowá, Kaingang e as populações brasileiras na bacia dos rios Paranapanema/Tibagi no século XIX: conquista e relações interculturais. Fronteiras (Campo Grande), v. 9, p. 47-72, 2007.
SEGUEM os ataques: criminosos cercam, atiram e provocam incêndios em retomadas Ava Guarani, Guarani Kaiowá e Kaingang. Conselho Indigenista Missionário. 20/07/2024. Disponível em: https://cimi.org.br/2024/07/seguem-os-ataques-criminosos-cercam-atiram-e-provocam-incendios-em-retomadas-ava-guarani-guarani-kaiowa-e-kaingang/
Autor: Mateus Torelli Fidelis
Licenciado em História pela Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP
Mestrando em Históra Social pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual de Londrina – UEL
Integrande do Projeto de Pesquisa História Social do Nordeste Paranaense: fronteiras, reocupação e memória
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